Os Velhos Malucos E O Mar

Decididamente, não está fácil ser Americano. O Melhor País da História, os polícias do Mundo, a terra dos livres e a casa dos parvos - perdão - bravos é, contas feitas, um infinito repositório de caos, insanidade e uma ou outra pérola de incontornável ironia. Porque durante anos (e provavelmente enquanto escrevo isto e enquanto vocês lêem), os sobrinhos do Tio Sam (e o resto de Mundo também) têm usado o mar como se não soubessem a diferença entre uma sanita e um balde de lixo. Isto leva a que a Natureza, na sua forma maravilhosamente caótica de fazer as coisas, nos mande por vezes para sítios onde não queremos ir. E foi exactamente isso que aconteceu numa praia da Califórnia, onde milhares de exemplares do chamado Urechis caupo (um anelídeo conhecido como peixe-pénis, sabe-se lá porquê) deram à costa, naquilo a que pessoas de mau-gosto chamariam uma invasão do... enfim, adiante (1).

Esta é uma espécie com 300 milhões de anos (e que é, portanto, velha como o... enfim, adiante), cujos exemplares têm uma esperança de vida de 25 anos (morrendo por isso novos como o... enfim, adiante) e que serve de alimento a lontras, gaivotas, Sul Coreanos e alguns peixes (quatro espécies animais conhecidas por comerem coisas estranhas como o... enfim, adiante). Se eu sou capaz de manter esta sucessão de piadas de incrível bom gosto? Não sei, já se vê o que tenho pendurado. Mas se alguns Americanos atiram ao mar aquilo que já não precisam, outros compram coisas que precisam mas que são destinadas ao mar.

Confusos? O tio explica.

Um estudo, feito por pessoas com batas e essas coisas, analisou várias páginas de venda de antibióticos destinados aos esguios habitantes dos oceanos. Não sei porquê, mas acho que foi porque há de facto gente com muito tempo livre. As mesmas pessoas que fizeram este estudo, mas desta vez com calculadoras e essas coisas, fizeram as contas e chegaram à conclusão de que dois e dois são mesmo quatro: como não há regulação para a venda antibióticos para peixes nos Estados Unidos, muita gente anda a tomar esta medicação em vez de ir ao médico (2), porque prefere não ter de vender um rim para tratar uma amigdalite. E por "muita gente" entenda-se "55 casos em 2248 comentários analisados, perfazendo um total de 2.4% no estudo em questão". Mas num país em que cerca de uma em cada quatro pessoas (não chega a uma pessoa inteira porque as amputações caseiras também devem estar muito na moda por lá) quase não tem dinheiro para pagar a medicação que toma regularmente, e em que 27 milhões de pessoas não têm qualquer acesso a cuidados de Saúde (3), os rumores daqueles 2.4% parecem-me manifestamente pouco exagerados.

Até porque existem registos fora do referido estudo de pessoas que tomam antibióticos para animais em demasia - talvez por essa medicação não resultar em pleno, talvez por não haver aconselhamento médico por falta de dinheiro ou talvez pelos dois, decidam vocês - e que acabam internadas por overdose medicamentosa. Isto resulta, surpresa do Urechis caupo, em contas de hospital ainda maiores. Decididamente os Estados Unidos têm uma fixação em estar à frente do Mundo em tudo, e por isso estão a trabalhar diariamente numa nova versão do nosso clássico "não morres do mal, morres da cura": não morres do mal que tentaste curar com antibióticos para animais, morres por não poder pagar a cura para a overdose que tiveste, devido a um problema que ninguém tem interesse em resolver. Já agora, se estiverem com atenção, conseguem ouvir ao longe as gargalhadas histéricas dos testiculionários donos das seguradoras e farmacêuticas que puxam os cordéis do Tio Sam, enquanto lêem estas notícias e ouvem o clássico refrão de Homem Com H, de Ney Matogrosso (4):

"Se correr o bicho pega,

Se ficar o bicho come."

(1) https://observador.pt/2019/12/14/praia-da-california-e-invadida-por-milhares-de-peixes-penis/

(2) https://www.smithsonianmag.com/smart-news/why-are-americans-taking-fish-antibiotics-180973779/

(3) https://visao.sapo.pt/saude/2019-12-15-americanos-andam-a-tomar-antibioticos-de-peixe-porque-e-mais-barato-do-que-ir-ao-medico/

(4) https://www.youtube.com/watch?v=7cSIkRKy4NQ