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A Vida Saiu À Rua

  • Filipe Pires
  • 26 de jun. de 2019
  • 3 min de leitura

A minha Avó faria hoje 65 anos. Isto se perguntassem à maior - e única - autoridade neste assunto: ela própria. Se ligarem a coisas insignificantes como o Registo Civil, Cédulas de Nascimento ou Bilhetes de Identidade, diriam que a Dona Antónia fazia, isso sim, 94 anos. Mas isso é gente que não sabe o que diz. A minha Avó manteve até ao fim um dos hábitos da minha Família - ser jovem até velho - e o melhor exemplo que tenho para provar esse hábito é o de uma das suas irmãs, que aos 87 anos provavelmente faz bullying com aquelas velhotas que, diz quem aprecia senhoras de idade, ainda estão ali rijinhas.

Mas voltando à minha Avó, ela foi durante toda a Vida uma pessoa convicta e persistente. Mas só porque já nos deixou, porque até ao dia 26 de Dezembro de 2018, muitas das pessoas que hoje a definem assim diziam que ela era só teimosa. E a Dona Antónia era tão convicta e persistente que eu ainda hoje acredito que ela foi quando quis, exclusivamente porque quis. Enquanto a conheci lembro-me de ela ter alguns problemas de saúde que chegam para arrumar muita gente, entre os quais se contam complicações cardíacas e pelo menos dois AVCs. E a senhora decidiu que o fim havia de ser com o quê? Exacto, uma gripe. Se quem a ia buscar para o Centro de Dia se queixava por ela só ir quando tinha vontade, imaginem o que dizia a Morte, que andou quase 30 anos a levar negas. Eu gosto de imaginar (porque tenho algum tempo livre) os diálogos que a minha Avó teve com a Cruel Ceifeira ao longo dos anos, e todos eles são parecidos com isto:

Morte (ler com um tom fantasmagórico): Antonica... chegou a tua hora...

Antónia Jacinta: Ora, já isto aqui 'tá outra vez... Não vou, 'tá muito frio. Logo vou mais logo.

Morte: Mas Antonica, quem decide a tua hora sou eu.

Antónia Jacinta: Era o que mais faltava, uma merda destas querendo mandar. Não vou, ainda em cima agora que 'tá dando o Malato.

Morte: Tens os teus entes queridos à tua espera no Outro Lado, Antonica...

Antónia Jacinta: Pois que esperem, que têm muito tempo para isso. Eu logo vou em o Sol descobrindo, que isto não é tempo de sair de casa. Ainda se apanha alguma ponta d'ar com este frio.

Dando agora um tom mais sério a isto (claro que sim), a perda de um familiar em idade avançada tem, ou pelo menos teve em mim, um efeito inconsciente e curioso: para mim, a idade limite para viver são 92 anos. Há pouca coisa que me ofenda, mas uma delas é haver gente com o desplante de viver mais tempo do que a minha Avó. Como se fossem melhores que ela, essa canalha. Este efeito gera uma de duas reacções: se a pessoa estiver próxima do limite, ouve-se na minha cabeça uma voz (entre muitas) que diz: "ahah, já não te fazes velho! Ou pelo menos não muito mais". Quando a pessoa tem a pouca-vergonha de ultrapassar o limite, levanta-se a voz da indignação, que diz: "então mas o que é isto? 'Tá na hora meu amigo! Vamos lá fechar os olhinhos e fazer ó-ó, que já deram os cadáveres d'Os Patinhos!" Em última análise, isto faz com que eu goste ainda menos de uma coisa de quem já pouca gente gosta: as reportagens sobre pessoas que fazem 100 anos.

Para terminar, agora sim um assunto sério. Não há forma de dar a isto uma perspectiva cómica, porque se trata da maior decepção que dei à minha Avó durante a sua Vida. Lembro-me como se fosse hoje de estar em sua casa, na cozinha, e de ela olhar para mim com uma mágoa profunda nos olhos, uma tristeza que pouca gente lhe conheceu. Foi o género de olhar que não transparece raiva, mas sim uma mistura de desilusão e resignação. A Dona Antónia olhou para mim com aquele olhar e disse-me, com uma naturalidade desarmante, as amargas palavras que eu nunca vou esquecer:

"Tu quando eras pequenino eras muito bonito"

 
 
 

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