2084 - Que Estrabucho É Este?
- Filipe Pires
- 18 de dez. de 2018
- 2 min de leitura

Sob a mesa do Starbucks, os pés de Bernardo Santiago fizeram movimentos convulsos, enquanto ele se ajeitava para apanhar o melhor ângulo possível do pôr-do-sol a bater num modelo de copo fotografado milhões e milhões de vezes antes desse momento, mas que ele conseguia capturar com uma autenticidade e uma qualidade únicas, como lhe confirmavam os comentários do Instagram. Não se levantou da cadeira, porém mentalmente estava a correr a lista de hashtags que podia utilizar para dar à sua publicação o maior alcance possível. Tornou a olhar para o seu telemóvel.
O colosso que domina o Mundo! O milagre que crianças da Ásia todos os dias constroem! Pensou que apenas dez minutos antes - uma eternidade dentro do melhor horário para publicar, como viu num vídeo do YouTube sobre gestão de redes sociais - teve dúvidas na sua mente sobre o resultado da sua fotografia: chuva de "gostos" ou esquecimento. Ah, caíram todas as suas dúvidas! Muita coisa havia mudado nele desde a sua infância, porém a transformação final, salvadora, vinha a acontecer gradualmente e dia após dia.
As notificações de todas as redes sociais onde estava registado ainda tocavam, Facebook, Instagram e Twitter, mas agora a frequência diminuíra um pouco. Ser influencer era afinal o seu trabalho. Um jovem aproximou-se com o seu próprio café. Bernardo, imerso num sonho bem aventurado, não reparou que era exactamente igual ao seu e ao de todas as pessoas que partilhavam aquela esplanada. A sua mente corria e dava vivas. O Mundo virtual dava-lhe o seu amor. Estava na pequena janela para o seu Mundo, confessando tudo e identificando todos. Levantou-se e andou pelo Mundo com a mente em branco, como se todos os dias fossem dias de sol, sempre de telemóvel armado. Por fim entrou-lhe nos ouvidos o som tão esperado de mais uma notificação.
Baixou a vista para o pequeno ecrã. Foram precisos quarenta minutos para que o sorriso se revelasse no seu rosto. Oh dúvidas cruéis e desnecessárias! Oh teimosa e involuntária voz da consciência! Dois comentários sobre uma fotografia de um copo de café encheram-lhe os olhos e a auto-estima. Agora estava tudo em paz, tudo óptimo, estava acabada a luta. Finalmente o Mundo apagara-lhe as dúvidas sobre si próprio.
Amava o Grande Google.
Adaptado dos últimos parágrafos de 1984, de George Orwell. Só tem quase 70 anos, é normal que continue actual.
Comments