Saúde Nostra - Que Estrabucho É Este?
- Filipe Pires
- 24 de jul. de 2018
- 3 min de leitura

Desde criança que gosto de ler. Leio e já li um pouco de tudo, menos aqueles livros de fisioterapia do ego que ensinam que não faz mal ser um falhado, porque assim o autor faz mais uns trocos à custa de quem precisa de verdadeiro aconselhamento, mas encontra ali um conforto vazio a 20€ por exemplar. De todos os livros que li, o que mais me marcou é e será sempre O Padrinho. Desde que li a obra-prima de Mario Puzo que quero conhecer o interior de uma grande organização mafiosa e foi isso que me levou a formar em Saúde.
Não minto. Antes de me formar tinha o sonho infantil de que vinha para isto para ajudar pessoas e que esta era a melhor forma de fazer uma diferença efectiva na vida de alguém. Mas depois de entrar no meio, entendemos as verdadeiras razões para fazermos o que fazemos. Em primeiro lugar, para garantir que empresas multi-nacionais e multi-milionárias podem continuar a decidir quem tem acesso à Saúde (um bem Universal, tal como a Educação) e que continuam a ser apresentados gráficos e projecções sempre a subir nas reuniões das Famílias. De um lado a espada do Serviço Nacional de Saúde a deitar pelas costuras, do outro a parede de um serviço relativamente disponível, mediante a disponibilidade financeira para pagar um rio de dinheiro na hora do atendimento ou para alimentar os afluentes que vão desaguar nas empresas multi-nacionais e multi-milionárias. Mas está tudo bem, porque uma vez por ano reúne-se toda a gente em convívio e nessa noite acabam-se as insatisfações, enquanto senhores velhotes e grisalhos sentem o primeiro sinal de Vida desde o convívio anterior, ao verem tanta gente disposta a construir o sonho que eles um dia tiveram: ganhar quantidades desmesuradas de dinheiro.
Depois, os colegas. Se é que me permitem a ousadia de chamar colegas aos Senhores Supremos, os infalíveis donos de todo o conhecimento e que me espantam quase todos os dias, quase sempre por haver entre Eles pessoas que se levantam da cama sem cair ou que atam os sapatos sem vazar um olho. Talvez usem bancos para se apoiarem e sapatos com tiras adesivas, mas eu nunca o saberei. São grandes e impressionantes estas divindades, vistas assim há mais de 50 anos - e não haver uma mudança de mentalidade em 50 anos tende a ser um sinal bastante positivo - e que vão mantendo viva a chama da adoração pelos milagres praticados exclusivamente pelo seu esforço e dedicação. E vá, pelo esforço e dedicação dos Enfermeiros e dos Técnicos de Cardiologia, Análises Clínicas, Radiologia, Fisioterapia, Terapia da Fala, Terapia Ocupacional, Ortoprotesia, Farmácia e Nutrição. Mas as divindades recebem o seu peso em ouro (e algumas valem bastante ouro) para passarem as ordens divinas, em forma de requisições pré-seleccionadas, aos comuns mortais. Não chega? Também passam receitas. Embrulhem!
E por fim, os utentes. Sempre os utentes. Tudo pelos utentes. A minha maior dedicação são sem dúvida os clientes, perdão, os utentes. Daqueles que só falam a alguém que tenha vestida uma bata, porque uma bata é a maior diferença que existe entre um borra-botas como eles e alguém que precisa das mesmas botas lambidas. Gosto principalmente dos que jogam pela janela a máxima "mama, mas não abuses" e que, para além de mamarem, abusam e ficam chateados se não os deixarem. Porque pagar dá direito a tudo, inclusivamente à sodomia da paciência dos profissionais que dão a ganhar quilos de dinheiro e que cumprem um horário elástico quanto é preciso fazer um esforço pelo patrão - perdão, pelo serviço - mas que é feito de pedra na hora de ver esse esforço compensado.
São também os utentes que nos ensinam que, independentemente da formação e dos anos de experiência que tenhamos, não percebemos nada do que fazemos, porque os utentes têm sobrinhos no 2º ano de medicina que lhes dão umas dicas. E acima de tudo, são os utentes que nos dão a honra de ser a alternativa ao Papão e ao Homem do Saco. Nós somos Os Senhores De Branco Que Dão As Picas Quando Os Meninos Não Comem A Sopa. Porquê criar bons hábitos de alimentação desde cedo quando se pode traumatizar uma criança e tornar o nosso trabalho quase impossível? Isso é que era bom! Depois quem é que escrevia nos livros de reclamações porque os técnicos são uns incompetentes, que não conseguem tirar sangue a uma criança que está a ser castigada sem saber o motivo?
Os utente são o quê? Maus pais?! Quero o livro de reclamações!
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