O Gordo dos Óculos - Que Estrabucho É Este?

O gordo dos óculos é um personagem mítico na trama da Vida, capaz de romper com todas as concepções sociais que existam até que ele aparece. Se é errado gozar com gordos porque as pessoas podem ser sensíveis quanto ao seu peso e se é errado gozar com caixas de óculos porque não se goza com doenças e há limites para a brincadeira, é inevitável gozar com o gordo dos óculos pela absurda soma de defeitos que se reúne num corpo só.

Eu nasci gordo. Dirão as boas pessoas que "não eras nada! Eras um menino bonito e reguila!" e eu respondo: tudo bem, mas ainda assim era gordo. Eu sei que era, já vi fotos. Quem é gordo sabe que as famílias inventam toda uma série de desculpas para o pequeno paquiderme que têm em casa. Vale tudo, desde ossos grandes à genética da família, passando pelo clássico "ele ainda não deu o salto, só isso". É claro que ainda não deu o salto minha gente, é gordo! No meu caso, eu sofria de um problema glandular: as minhas glândulas diziam "come" e eu tinha um grande problema em dizer-lhes "não!"

Aos 6 anos comecei a usar óculos. E foi no momento em que pus o primeiro par de óculos na cara que se abriu um buraco no tempo e no espaço e eu entrei na dimensão dos eternamente gozáveis e impossíveis de levar a sério. E eu vivo bem com isso. Porque o gordo dos óculos é, disfarçadamente, um super-herói da Vida real. É a tábua rasa da infância, o último reduto de todos os sofredores. Os gordos podem dizer "ao menos não uso óculos" e os caixas de óculos podem dizer "ao menos não sou gordo!". E o gordo dos óculos tem que encarar esse papel com a naturalidade de uns óculos partidos quando tenta responder.

É também com o gordo dos óculos que as crianças são pela primeira vez confrontadas com o conceito de paradoxo. No recreio, onde se fundam as grandes mentes do futuro, o gordo vai à baliza. É uma verdade imutável do Universo e é verdade em todas as línguas. Gordo vai à baliza porque não corre, ponto. Mas (e há sempre um mas), o caixa de óculos vai à frente, geralmente onde houver menos gente, para não partir a alcunha. Perante esta situação, as crianças são forçadas a um complexo raciocínio lógico, desenhado pela Vida como mecanismo de selecção natural na selva da escola: se o gordo vai à baliza e o caixa de óculos vai à frente, onde é que fica o gordo dos óculos?

De fora. O gordo dos óculos fica de fora.